quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Só a Lua


“Tudo bem.”


Ouvi de uma voz sem rosto. “Tudo bem”.


Vi meu pai, o sério, gargalhando com chapéu pirata, abraçando um desconhecido.


Vi minha mãe, a fechada, girando com uma saia rodada, com jeito de menina mais nova que eu.


Vi minha tia, a religiosa, com um copo do líquido proibido na mão, batendo os pés no chão como um tambor ritmado.


Vi meu primo, o médico tímido, berrar por toda parte feito o louco que um dia ele mesmo internou. 


 Vi toda minha vizinhança de olhos arregalados e vermelhos, com dentes grandes para fora. 


Mas não vi o rosto que me disse “tudo bem.”


Lembro da voz. Grave e delicada.  Direta e acolhedora.


A bola branca  da lua ocupava todo a dimensão da minha pequena cidade.


A lua cheia faz o sangue dançar. Isso ninguém me disse. Mas eu sei.



Daqui a pouco ele iria aparecer.


Ele, o grande, o único, o mais esperado dos segundos, minutos, horas, dias, meses. O sentido de muitas vidas. Alguns fingiam que não, eu tinha certeza que sim.


Meu primo, meu pai, minha mãe, minha tia o  chamavam : “vem, vem, vem, vem!”


O coro aumentava na multidão: “Vem, vem, vem, vem”


Onde eu queria estar agora? No meio do meu silêncio. Por quê? Pode? A resposta foi imediata. 


Alguém puxou minha mão, me levou para o meu da rua e disse: olhe! Eu olhei.

Os olhos debaixo dos grandes chifres, o manto colorido. O vaqueiro embriagado. 


A música tocava alto, mas não tão alto quanto a batida do meu coração. Meu corpo tremia. Chorei. Mas ninguém viu. Só a lua.


A noite do boi era a única no ano em que a palavra brincar era um verbo no imperativo. “Anda, menino,  brinque!” E era a única no ano em que para mim o verbo era um martírio. Olhava para ele tentando explicar: “ Eu sou daqui, mas  também não sou! Entende?”   


Não. 


Olhei para os lados em pânico. O pai, a mãe, a tia, o primo estavam tão perto, mas tão longe. Se eu estourasse o meu silêncio, ficaria desamparado. Mas não conseguia mais me controlar. Até que ... 


“Tudo bem.”  


Suspensão.


Haveria uma fresta de luz no meio da minha escuridão aglomerada?


De quem seria essa voz. Seria ela propriedade de alguém?


“Tudo bem, você pode, tudo bem.” 


 Lembrei que eu era criança. Virei o melhor ninja do mundo. Choque cultural. Me afastei sorrateiramente. Minha missão deu certo. De onde vinha essa voz?


Não importa. Eu sou daqui, mas também não sou. Entende?


Ninguém mais me viu. Só a lua.