Eu tinha a Fatinha. Sim, eu
tinha, tinha, a Fatinha. E ela tinha a mim. O que mais me lembra na Fatinha,
eram os olhos, como brilhavam. Eu a chamava: Fatinha dos olhos que brilham. E
eram meio puxados, os olhos. Ela também vivia sorrindo. Eu era apaixonado pela
energia dela. Eu era apaixonado por ela. A Fatinha morava com a família num
apartamento bem pequeno do meu prédio. Um apartamento desses de sufocar a alma.
E por isso ela vivia o tempo todo fora de casa, olhando o céu. Respirando
profundamente. Para mim ela aliviava o coração. A gente se encontrava depois da
escola e ficava no alto de uma pequena colina na margem do fim da cidade, vendo
o entardecer. Na nossa cidade, o por do sol era o mais bonito do mundo. E olha
que o mundo é grande. Cada instante ele nos surpreendia mais. Era a melhor hora
do dia. Era a hora que a gente compartilhava sonhos. A Fatinha queria ser astronauta. Para ficar
mais perto das estrelas, morar no céu e respirar direito. Eu queria ser médico
para cuidar da Fatinha caso ela precisasse de alguma coisa e tivesse que descer
do céu. A gente foi crescendo e a Fatinha foi deixando de olhar para o céu, de
olhar para o por do sol, para mim. De olhar. Aí, do nada, ela me disse que
desistiu de ser astronauta. Eu não entendia. “Por que, Fatinha?” E ela
respondia: “Olha para mim! eu não posso! Eu não devo!”. “Por que, Fatinha?”
”Olha para mim ! Eu não posso! Eu não devo!”
“Eu não posso, eu não devo.” (pausa) Ela casou com o Antônio, o filho do
coronel. A festa foi na hora do por do sol, num imenso jardim florido. Eu
estava lá. Ela me convidou . Mas não olhou para o céu, nem para o sol. Nem para
mim. Não olhou. Ela foi morar na maior casa da cidade, que ficava na maior
fazenda da região. Eu achava que ela era muito feliz agora que tinha todo o
espaço do mundo. E olha que o mundo é grande. Um dia, eu soube que Fatinha se
matou. Se enforcou na corda do banheiro do chuveiro. Fatinha, a menina do
sorriso mais lindo e dos olhos brilhantes, se matou com a corda do chuveiro do banheiro da maior fazendo
da região, em meio a todo espaço do mundo. E olha que. E eu... Eu já tinha
desistido de ser médico. E eu... E eu ...
E eu odeio levar choques. Eu
odeio levar choques, eles me estrangulam, eu sinto a garganta se fechar, eu
ouço os órgãos do meu corpo mexerem. Eu não suporto mais levar choques. Eu não
sei quando eles começaram e porque começaram. A cidade é pequena, eu conheço
quase todo mundo e ninguém me conta, ninguém me responde, como é que foi que
eles começaram. Eu lembro da minha mãe. Ela tinha um aquário e eu ajudava a
cuidar dos peixes. Me lembro que ela me alertava para o choque e um dia eu
levei choque no aquário que tinha uma corrente elétrica. Acho que foi ali que
começou a minha vida de choques. Eu não me lembro mais o que aconteceu. Até hoje
eu... Até hoje eu...
Até hoje eu olho para o céu e
converso com ela. A Fatinha. Como se ela tivesse virado astronauta e tivesse
entre as estrelas acenando para mim. Um dia ela vai descer e eu poderei cuidar
dela, como combinamos. Fatinha está lá, sorrindo no por do sol mais bonito do
mundo. E eu... E eu...
E eu brincava com o Rogerio de se
esconder na barraca improvisada e fingir que a gente estava no meio de uma
floresta selvagem perdidos e sem alimentos e íamos ter que caçar e enfrentar
onças. A gente se divertia. Nossa cidade era quente, mas a gente colocava
casaco para fingir que estava com frio, de noite, no meio da floresta selvagem.
A gente também se comunicava por uma radio imaginaria, para pedir resgate
imaginário. E o Rogério era muito gente boa. Ele era muito gente boa. O sonho
dele era ter um carro igual do nosso amigo Antônio, o filho do coronel. Não era
um carro. Era O carro. Mas o Rogerio, jamais ia ter aquele carro, a não ser
que... Eu nunca entendi como o Rogério virou traficante e se viciou em craque.
Ele era muito gente boa. Muito gente boa.
A foi crescendo e o Rogerio me deu de presente um livro no dia do meu
aniversario. Era a peça Hamlet. Hamlet? Que porra é essa, Rogério? Eu lia e não
entendia nada. Ele me falava de ser. De existência. Eu achava que era o efeito
das drogas, mas ele olhava nos meus olhos e dizia: “não! Não é isso! Não é
isso!” e ficava alterado, seu rosto vermelho horas, ficava muito alterado “não
é isso! Não é isso!”. Eu o amava muito, ele era muito gente boa, e não gostava de ver ele tão vermelho,
parecia que ia explodir. Uma vez, numa dessas brigas, ele estava tão vermelho
que para calar sua raiva, eu o beijei na
boca. (pausa) E ele me deu um soco na cara: “porra, cara, ta maluco, ficou
maluco, ta maluco?” Eu disse que só queria calar a boca dele, para ele não
explodir, porque o amava. Ele nunca mais falou comigo. Eu tentei ler o Hamlet
de novo e acho que entendi mais. Eu queria dizer para ele que entendia mais do
Hamlet, mas ele nunca mais falou comigo. Nunca mais. Meu professor de catecismo
soube do beijo, até hoje eu não sei como, e me mandou rezar cinco dias
seguidos. Eu também não entendi, principalmente depois que ele me mandou
repetir o beijo com ele, mas eu não repeti, porque eu não o amava. A minha
professora de matemática também soube do beijo , eu também não sei como, e
chorou na minha frente depois da aula, quando a gente estava sozinho na sala.
“eu estou decepcionadíssima com você”, ela repita essa frase gritando. Eu
ficava desesperado de ver ela chorar até que
ela me agarrou e tirou a minha roupa e colocou meu pau dentro do sexo
dela e começou a se mexer e eu gozei. Fiquei cinco dias lendo Hamlet, tentando
entender um pouco mais das coisas.
Um dia eu soube que meu amigo Rogerio se matou de
tanto craque dentro do carro que ele conseguiu comprar, igual a do nosso amigo
Antônio, filho do coronel, casado com a Fatinha. E eu li o Hamlet mais cinco
dias e eu ... entendi um pouco mais. E eu chorei e quase morri. Decidi sair da
cidade, mas minha mãe disse que se eu fizesse isso, ela ia morrer de solidão. Esse foi outro
choque.
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Então eu acordei sobressaltado.
Dentro de mim voava os órgãos por todos os lados . Eu estava tão cheio de vida
que nada me bastava, então me concentrava em todos os detalhes do mundo. Porque
meu coração estava disparado de tanto querer. Eu começo a entender que o amor é
uma coisa que eu guardo e mostro o tempo todo. Eu o conquistei quando nasci e
ele anda comigo aonde eu for. As vezes algo me provoca a coloca-lo para pra fora. Algumas horas eu perco o controle,
porque eu não sei muito a medida das coisas. Algumas pessoas se assustam e
fogem. Algumas não. Todas as pessoas se assustam e fogem. Todas. Eu aqui, não
consigo olhar nos olhos de ninguém. Nos olhos. De verdade. Eu aqui... Eu
procuro, eu busco. Talvez eu nunca mais as encontrarei de verdade. Agora eu vou
ficar triste, e não sei quanto tempo isso vai durar. Eu tenho medo da minha
tristeza, pois é quando eu afasto o outro de mim. Eles escutam meus gemidos de
dor, angustia, minhas pontadas no peito que escapolem a qualquer hora do dia,
eu não posso controlar isso. E não me entendem, porque não há nenhum motivo
aparente. Aparente. Eu acho que é porque eu amo demais e todo esse amor não
cabe no mundo. E meu peito dói, o ar passa por fora da garganta e eu crio um
espaço inflado no meu corpo. Eu começo a morrer de tanta vida. E todo mundo
percebe. Eu tento me esconder, mas são as horas que eu mais apareço, apareço de
tanto existir de verdade. E a coisa que mais me assusta é ficar sozinho. E a
coisa que mais me assusta é ficar sozinho. E a coisa que mais me assusta é
ficar sozinho. Eu disfarço. Pronto, agora estou sorrindo. Agora estou ótimo. É
melhor que me vejam assim. Estou perfeito. Minha vida é perfeita. Eu tenho uma
casa. Eu tenho um carro. Eu tenho filho. Eu tenho uma casamento estável. Eu
tenho saúde. Eu tenho aposentadoria, plano de saúde, canal a cabo, internet,
aplicação no banco, mei, inss, pis. Pronto. Agora eu sou perfeito. Estou
dentro. Totalmente dentro. Já vão começar a sorrir para mim de mim. Já vão
começar a se aproximarem de mim de novo. Talvez me convidarem para suas festas
de aniversário, ou churrasco de bodas e chás de fraldas nos domingos a tarde a
céu aberto no jardim de algum parque desta cidade. Que lindo!
Ainda assim vou procurar em cada
canto, alguma espécie de pessoa que encaram o universo como eu. Me olham nos
olhos e viramos cúmplices. A gente ri em silencio em fagulhas de segundo de sonhos reais .
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