quarta-feira, 7 de maio de 2014

Leve

As árvores são tão misteriosas que eu não canso de olhar.
 Foi o que falou Rebeca, quando lhe perguntaram por que ela estava tão quieta.
_ Afinal, tem tanta criança brincando, você não devia ficar aí parada. - Disse a tia a Lúcia.
_ Eu não sou mais criança.
Voltou a olhar as árvores, hipnotizada com suas grandezas e altivez, lembrando de um tempo em que era inteiramente feliz. Uma saudade enorme em seu peito e a vontade de ficar triste naqueles instantes.
_ Eu não sou mais criança! – Repetiu, com um pouco de raiva por sua tia não perceber isso. 
 Rebeca já tinha treze anos e como muitas meninas nessa idade, não se sentia mais criança. Muito menos se sentia adulta. E na confusão de seus sentimentos, preferia ficar à parte, num outro mundo, o que construía dentro dela. E esse mundo crescia, e quanto mais ele crescia, Rebeca se fechava nele.
_ Você sempre foi uma menina tão alegre... É uma pena...
Rebeca não respondeu.  “Eu não sei mais ser feliz”, pensava, “esqueci”.  Há muito tempo que não visitava tia Lúcia. Tia Lúcia morava numa casa grande do interior, cheia de árvores antigas, daquelas grandes, com muitos galhos.  Sempre achou fundamental viver cheia de espaço, sentindo o vento na cara e ver um pedaço enorme de céu da sua janela.  Rebeca morou lá com sua mãe, entre seus cinco e oito anos, e naquela época era a menina mais alegre da pequena cidade.  Talvez pelo mesmo motivo que tia Lúcia gostava de morar ali: vento, espaço, céu... Mas sua mãe precisou se mudar para a cidade grande, por causa de um trabalho irrecusável e Rebeca, claro, teve que ir junto. A dor de sair de lá foi tão forte, que preferiu apagar suas memórias de criança solta, para não viver de nostalgia e a saudade de um lugar que não poderia mais ter.  Agora, estava ali novamente, no aniversário de sessenta anos de tia Lúcia, convite irrecusável, que não tinha jeito de faltar, sua mãe não deixaria, era uma festança, tia Lúcia convidou todo mundo, todo mundo mesmo, a vizinhança toda, famílias com suas crianças e velhos, era dia de alegria. “Pra quê? Por que estar aqui? Demorei tanto pra esquecer este lugar e estou de volta... Se eu tivesse 18 anos, ninguém iria me obrigar. Queria fechar os olhos e crescer.”
Treze anos são como as profundezas de um abismo infinito e escuro. É um querer de não sei o quê. É uma vontade de ficar parada olhando a vida passar até ficar adulto, porque não sei.
As crianças corriam, dançavam, comiam, riam, gritavam. A música tocava alto.  Rebeca olhou o relógio. O tempo não passava. Não via a hora de ir embora. Agora era uma menina da cidade grande, tinha muitas coisas pra fazer. Queria embora também por vingança.  Pra mostrar que havia superado a mudança, que não fazia mais parte daquele lugar.
De repente viu uma mão em sua direção. Estremeceu. Não era a mão da tia Lúcia, muito menos da sua mãe. Era uma mão de um semi adolescente como ela. Olhou para o dono da mão. Era um menino, devia ter uns quatorze anos.
_ Vamos correr?  - Disse ele.
“Oi? É comigo? Vamos correr?”, pensou.  Há quanto tempo não ouvia essa frase? Uma menina moça que morava na cidade, espremida em um apartamento pequeno.
_ Vamos correr? - Repetiu o menino.
Aquela voz não era estranha, tinha algo de familiar. Sensação de um lugar guardado na memória, a mesma sensação de olhar as árvores, de um tempo pleno.  Olhou bem pra ele.
_ Rebeca? Sou eu!
“Eu quem? Vamos correr?” Olhou direito pra ele. Viu os cabelos enrolados, a boca larga, os olhos pequenos e puxadinhos. Estavam sorrindo, os olhos.
_ Vamos, Rebeca. Vamos logo!
“Vamos Rebeca, vamos logo.” Quantas vezes já ouvira essa frase? E por que estava tão esquecida? Ele dava as mãos para ela segurar. Ficou sem ação. Ficou com medo.
_Vamos logo, Rebeca. Vamos correr!
Rebeca fez cara de “não fala comigo, que eu não te conheço”. O menino, então, desistiu. Seu sorriso se apagou. Decepcionado, correu sozinho. Foi em direção às árvores. Aquelas grandes e altivas que Rebeca admirava. Levantou de súbito. Uma mistura de ansiedade e angústia. Respiração ofegante. Olhou bem pra ele. De onde ele era? E o que fazia ali? Quanto tempo? Foi lembrando aos poucos.  Anderson! Lembrou!  Anderson! Anderson, o menino que não cansava de correr.   Era filho de uma das vizinhas e brincava com ele todo final de tarde. Como ele estava diferente! Como mudara. Já tinha pelos no corpo, as costas estavam largas, tinha um calo na garganta.  Por isso não o reconhecera. Era quase um homem! Alto e grande. Anderson! O pequeno Anderson havia crescido! Como ela! Sentiu uma saudade tão grande. Era tão bom os tempos que brincava com ele... Passavam os dias juntos correndo entre as árvores, subindo nos galhos, nadando no rio, comendo fruta fresca e o bolo fresquinho do final da tarde.  Foi tão triste a despedida, que também preferiu esquecê-lo. Quando se mudou para a cidade grande, era como se tudo tivesse acabado, era como se toda a sua vida ali, virasse apenas um sonho.
No início, até lembrava desses momentos com alegria, e depois a lembrança passou a vir com dor da saudade, e a saudade ficou tão grande e tão doída, que achou melhor esquecer. Apagou da memória e se calou. Foi adiante assim, como uma menina que parecia triste. Agora, com Anderson ali, na sua frente, voltou a lembrar de tudo. Até do pedido de casamento na beira do rio. Sim! Eles tinham entre seis e sete anos, e Anderson a pediu em casamento na beira do rio. Rebeca riu e se atirou na água. Preferia brincar a pensar em coisas de adulto.  Nunca mais se viram até então. Voltou para o seu mundo achatado pelas paredes do apartamento, da escola e as ruas cheias de carros, motos, ônibus e gente. Anderson! Ele mesmo, mais velho e maior, diferente, mas era ele mesmo, ali, na sua frente de novo! Há quanto tempo não corria? Por que queria se tornar adulta tão rápida? Será que ainda conseguiria subir em uma árvore? Tão jovem e tão velha se sentia. Pensou que ainda tinha tempo para isso. O que são treze anos?  Ainda teria muito tempo antes de ficar adulta. Posso correr sim. Dane-se o que pensarão de mim. Por que estou tão preocupada com isso? Anderson já estava lá na frente.
_ Espera! - Gritou repentinamente.
Anderson olhou para trás. Viu Rebeca acenando. Um corpo de menina mulher começou a correr em sua direção. Anderson voltou a sorrir. Saiu em disparada.
_ Tenta me pegar.
 E subiu em uma árvore. Rebeca ia correndo meio desengonçada atrás dele. Anderson já estava lá em cima.
_Eu não vou subir! Eu não consigo!- Disse Rebeca ofegante.
_ Claro que vai! Você sempre conseguiu.
_ Mas eu cresci.
 Anderson riu.
_ Cresceu aonde? Só se for na cabeça, porque continua leve.
 “Continua leve.” Rebeca não esperava ouvir isso. Ela que carregava um peso tão grande, um peso do mundo, um peso de ser.
_ Você me acha leve? - Perguntou em duplo sentido.
_ Acho não, tenho certeza. É só olhar pra você.
Se olhou. De fato, seu corpo não havia mudado tanto assim. Crescera, claro, as medidas tinham aumentado, mas ainda era uma menina. De fato, uma menina leve.
_ Sim, eu posso subir.
Colocou um pé no tronco. Tremeu no início, mas aos poucos foi lembrando como fazia. Foi ganhando confiança. Pé, mão, respira, pé, mão, respira...
_ Mais rápido! Tá parecendo uma lesma!
_ Lesma nada! Eu sou rápida.
_ Duvido.
Rebeca acelerou. Pé, mão, pé, mão, pé, mão, sem respirar. Quando viu... Uou! Já estava lá em cima, no topo, ao lado dele.
_ Agora sim! Agora eu sei que é você.
Rebeca olhou para Anderson, olhou para baixo, olhou novamente pra ele e sorriu. Anderson, então, falou:
_ Você não mudou nada.
Ela enrubesceu.  Se ele soubesse o quanto ela tinha mudado.  Ele a olhou nos olhos, ela abaixou a cabeça, ficou nervosa. Sim de fato, já não era mais criança.
_ Você ainda mora aqui? Tá estudando em que série? Quer conhecer mina casa na cidade grande? Sabia que eu tenho uma gata? Sabia que eu aprendi a falar inglês?
Colocou a mão na boca. Não sabia como podia sair tanta pergunta de uma só vez de dentro dela. Ficou sem graça.
_ Desculpa.
Ele riu.
_ Tudo bem.  
Fez- se um tempo de silêncio. Muitas coisas se passaram na cabeça deles. Anderson pensava em qual das perguntas responderia. Rebeca não sabia para onde olhar. Anderson, finalmente, escolheu.
_ Eu quero muito conhecer a cidade grande com você.
Os olhos de Rebeca se arregalaram. Um misto de alegria e nervoso. Uma vontade de correr dali para bem longe, com medo dos sentimentos que chegavam esbravejantes, sem pedir licença. Mas, para seu alívio, Anderson se adiantou.
_ Olha, o sol tá se pondo.
Rebeca olhou e viu o céu mais bonito de sua vida. Sorriu. Na verdade gargalhou, gargalhou tanto que quase que caiu. Há tanto tempo que não sorria assim. Anderson olhava pra ela sem entender.
_O que foi?
 Rebeca não conseguia responder. Precisava colocar pra fora aquela menina que tanto escondera, com medo talvez de ser quem realmente é. Porque ser quem realmente é, é ser leve. Anderson desistiu de saber. Riu também.
_ Que saudade de você! - Disse ele, meio sem jeito.
E, ruborizada, ela respondeu:
_ Eu também estava. Muitas saudades.
 Sorriram um para o outro. Talvez se ele perguntasse ali, naquele momento, se ela gostaria de casar com ele, talvez dissesse sim. Afinal, de fato, não era mais criança. Tudo bem, estava longe de ser adulta, mas já sentia que poderia fazer promessas para o futuro. Melhor não tocar nesse assunto, então.
_ Eu vou falar com a sua mãe, pra ela deixar você conhecer a cidade grande comigo.
Esse era o seu “sim”. Anderson arregalou os olhos, sorriu de novo.
_ Antes disso, quero ver se você me alcança.
E saiu em disparada novamente, em direção à outra árvore.
_ Anderson! Você também não mudou nada!
 Antes de correr atrás dele, Rebeca olhou para as crianças da festa. Dançavam quadrilha.  Olhou para Anderson. Já estava longe, subindo em outra árvore. Olhou para a casa da tia Lúcia e viu uns adultos conversando na varanda. Entendeu o que era estar ali novamente, depois de tanto tempo. Que bom que sua mãe obrigara ela sair de casa. Não queria ir de jeito nenhum. Não queria entrar em contato com algo que fez tanto esforço para esquecer. Mas como esquecer? Como se esquecer de algo que marcou sua alma, algo que fazia parte dela? A sua infância. Sim, ela sabia ser feliz, sabia ser feliz e não queria mais negar. Quando se mudou, reagiu a tudo. Agora aceitava. Demorou tanto para voltar com medo de um sei lá o que... Fechou-se num mundo próprio para se proteger de sentimentos que estavam sempre com ela. Mas que bom que só tinha treze, estava aprendendo a viver, a se se descobrir, e é isso mesmo que é. O que mais importava agora era uma sensação boa de ser leve.
_ Vai ficar aí pra sempre? - Perguntou, Anderson, lá de longe.
“Ficar aqui pra sempre...” Não! Não, definitivamente não.  Se tivesse que mudar de novo, se tivesse que viver coisas novas, que ótimo! Que bom é receber novas oportunidade na vida e uma coisa não precisa excluir a outra. Não precisava esquecer. Porque entendeu, ali, que nunca perdera nada. Ela era tudo o que viveu e que ainda viverá. E pode ser bom aceitar. Abriu os braços bem grande como quem quer abraçar mundo.
_ Rebeca! - Anderson já estava apreensivo. - Você vem?
Rebeca foi. Tia Lúcia olhava de longe. Acenou para os dois. Feliz.
_ Vamos até o rio?
_Vamos!

Foram.  Leves!

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