As árvores são tão misteriosas que eu não canso de olhar.
Foi o que falou
Rebeca, quando lhe perguntaram por que ela estava tão quieta.
_ Afinal, tem tanta criança brincando, você não devia ficar
aí parada. - Disse a tia a Lúcia.
_ Eu não sou mais criança.
Voltou a olhar as árvores, hipnotizada com suas grandezas e
altivez, lembrando de um tempo em que era inteiramente feliz. Uma saudade
enorme em seu peito e a vontade de ficar triste naqueles instantes.
_ Eu não sou mais criança! – Repetiu, com um pouco de raiva
por sua tia não perceber isso.
Rebeca já tinha treze
anos e como muitas meninas nessa idade, não se sentia mais criança. Muito menos
se sentia adulta. E na confusão de seus sentimentos, preferia ficar à parte,
num outro mundo, o que construía dentro dela. E esse mundo crescia, e quanto
mais ele crescia, Rebeca se fechava nele.
_ Você sempre foi uma menina tão alegre... É uma pena...
Rebeca não respondeu.
“Eu não sei mais ser feliz”, pensava, “esqueci”. Há muito tempo que não visitava tia Lúcia.
Tia Lúcia morava numa casa grande do interior, cheia de árvores antigas,
daquelas grandes, com muitos galhos.
Sempre achou fundamental viver cheia de espaço, sentindo o vento na cara
e ver um pedaço enorme de céu da sua janela.
Rebeca morou lá com sua mãe, entre seus cinco e oito anos, e naquela
época era a menina mais alegre da pequena cidade. Talvez pelo mesmo motivo que tia Lúcia
gostava de morar ali: vento, espaço, céu... Mas sua mãe precisou se mudar para
a cidade grande, por causa de um trabalho irrecusável e Rebeca, claro, teve que
ir junto. A dor de sair de lá foi tão forte, que preferiu apagar suas memórias
de criança solta, para não viver de nostalgia e a saudade de um lugar que não
poderia mais ter. Agora, estava ali
novamente, no aniversário de sessenta anos de tia Lúcia, convite irrecusável,
que não tinha jeito de faltar, sua mãe não deixaria, era uma festança, tia Lúcia
convidou todo mundo, todo mundo mesmo, a vizinhança toda, famílias com suas
crianças e velhos, era dia de alegria. “Pra quê? Por que estar aqui? Demorei
tanto pra esquecer este lugar e estou de volta... Se eu tivesse 18 anos,
ninguém iria me obrigar. Queria fechar os olhos e crescer.”
Treze anos são como as profundezas de um abismo infinito e
escuro. É um querer de não sei o quê. É uma vontade de ficar parada olhando a
vida passar até ficar adulto, porque não sei.
As crianças corriam, dançavam, comiam, riam, gritavam. A
música tocava alto. Rebeca olhou o
relógio. O tempo não passava. Não via a hora de ir embora. Agora era uma menina
da cidade grande, tinha muitas coisas pra fazer. Queria embora também por
vingança. Pra mostrar que havia superado
a mudança, que não fazia mais parte daquele lugar.
De repente viu uma mão em sua direção. Estremeceu. Não era a
mão da tia Lúcia, muito menos da sua mãe. Era uma mão de um semi adolescente
como ela. Olhou para o dono da mão. Era um menino, devia ter uns quatorze anos.
_ Vamos correr? -
Disse ele.
“Oi? É comigo? Vamos correr?”, pensou. Há quanto tempo não ouvia essa frase? Uma
menina moça que morava na cidade, espremida em um apartamento pequeno.
_ Vamos correr? - Repetiu o menino.
Aquela voz não era estranha, tinha algo de familiar. Sensação
de um lugar guardado na memória, a mesma sensação de olhar as árvores, de um
tempo pleno. Olhou bem pra ele.
_ Rebeca? Sou eu!
“Eu quem? Vamos correr?” Olhou direito pra ele. Viu os
cabelos enrolados, a boca larga, os olhos pequenos e puxadinhos. Estavam
sorrindo, os olhos.
_ Vamos, Rebeca. Vamos logo!
“Vamos Rebeca, vamos logo.” Quantas vezes já ouvira essa
frase? E por que estava tão esquecida? Ele dava as mãos para ela segurar. Ficou
sem ação. Ficou com medo.
_Vamos logo, Rebeca. Vamos correr!
Rebeca fez cara de “não fala comigo, que eu não te conheço”.
O menino, então, desistiu. Seu sorriso se apagou. Decepcionado, correu sozinho.
Foi em direção às árvores. Aquelas grandes e altivas que Rebeca admirava.
Levantou de súbito. Uma mistura de ansiedade e angústia. Respiração ofegante.
Olhou bem pra ele. De onde ele era? E o que fazia ali? Quanto tempo? Foi
lembrando aos poucos. Anderson! Lembrou!
Anderson! Anderson, o menino que não
cansava de correr. Era filho de uma das
vizinhas e brincava com ele todo final de tarde. Como ele estava diferente!
Como mudara. Já tinha pelos no corpo, as costas estavam largas, tinha um calo
na garganta. Por isso não o reconhecera.
Era quase um homem! Alto e grande. Anderson! O pequeno Anderson havia crescido!
Como ela! Sentiu uma saudade tão grande. Era tão bom os tempos que brincava com
ele... Passavam os dias juntos correndo entre as árvores, subindo nos galhos,
nadando no rio, comendo fruta fresca e o bolo fresquinho do final da
tarde. Foi tão triste a despedida, que também
preferiu esquecê-lo. Quando se mudou para a cidade grande, era como se tudo
tivesse acabado, era como se toda a sua vida ali, virasse apenas um sonho.
No início, até lembrava desses momentos com alegria, e depois
a lembrança passou a vir com dor da saudade, e a saudade ficou tão grande e tão
doída, que achou melhor esquecer. Apagou da memória e se calou. Foi adiante
assim, como uma menina que parecia triste. Agora, com Anderson ali, na sua
frente, voltou a lembrar de tudo. Até do pedido de casamento na beira do rio.
Sim! Eles tinham entre seis e sete anos, e Anderson a pediu em casamento na
beira do rio. Rebeca riu e se atirou na água. Preferia brincar a pensar em
coisas de adulto. Nunca mais se viram
até então. Voltou para o seu mundo achatado pelas paredes do apartamento, da escola
e as ruas cheias de carros, motos, ônibus e gente. Anderson! Ele mesmo, mais
velho e maior, diferente, mas era ele mesmo, ali, na sua frente de novo! Há
quanto tempo não corria? Por que queria se tornar adulta tão rápida? Será que
ainda conseguiria subir em uma árvore? Tão jovem e tão velha se sentia. Pensou
que ainda tinha tempo para isso. O que são treze anos? Ainda teria muito tempo antes de ficar
adulta. Posso correr sim. Dane-se o que pensarão de mim. Por que estou tão
preocupada com isso? Anderson já estava lá na frente.
_ Espera! - Gritou repentinamente.
Anderson olhou para trás. Viu Rebeca acenando. Um corpo de
menina mulher começou a correr em sua direção. Anderson voltou a sorrir. Saiu
em disparada.
_ Tenta me pegar.
E subiu em uma árvore.
Rebeca ia correndo meio desengonçada atrás dele. Anderson já estava lá em cima.
_Eu não vou subir! Eu não consigo!- Disse Rebeca ofegante.
_ Claro que vai! Você sempre conseguiu.
_ Mas eu cresci.
Anderson riu.
_ Cresceu aonde? Só se for na cabeça, porque continua leve.
“Continua leve.”
Rebeca não esperava ouvir isso. Ela que carregava um peso tão grande, um peso
do mundo, um peso de ser.
_ Você me acha leve? - Perguntou em duplo sentido.
_ Acho não, tenho certeza. É só olhar pra você.
Se olhou. De fato, seu corpo não havia mudado tanto assim.
Crescera, claro, as medidas tinham aumentado, mas ainda era uma menina. De
fato, uma menina leve.
_ Sim, eu posso subir.
Colocou um pé no tronco. Tremeu no início, mas aos poucos foi
lembrando como fazia. Foi ganhando confiança. Pé, mão, respira, pé, mão,
respira...
_ Mais rápido! Tá parecendo uma lesma!
_ Lesma nada! Eu sou rápida.
_ Duvido.
Rebeca acelerou. Pé, mão, pé, mão, pé, mão, sem respirar.
Quando viu... Uou! Já estava lá em cima, no topo, ao lado dele.
_ Agora sim! Agora eu sei que é você.
Rebeca olhou para Anderson, olhou para baixo, olhou novamente
pra ele e sorriu. Anderson, então, falou:
_ Você não mudou nada.
Ela enrubesceu. Se ele
soubesse o quanto ela tinha mudado. Ele
a olhou nos olhos, ela abaixou a cabeça, ficou nervosa. Sim de fato, já não era
mais criança.
_ Você ainda mora aqui? Tá estudando em que série? Quer
conhecer mina casa na cidade grande? Sabia que eu tenho uma gata? Sabia que eu
aprendi a falar inglês?
Colocou a mão na boca. Não sabia como podia sair tanta pergunta
de uma só vez de dentro dela. Ficou sem graça.
_ Desculpa.
Ele riu.
_ Tudo bem.
Fez- se um tempo de silêncio. Muitas coisas se passaram na
cabeça deles. Anderson pensava em qual das perguntas responderia. Rebeca não
sabia para onde olhar. Anderson, finalmente, escolheu.
_ Eu quero muito conhecer a cidade grande com você.
Os olhos de Rebeca se arregalaram. Um misto de alegria e
nervoso. Uma vontade de correr dali para bem longe, com medo dos sentimentos
que chegavam esbravejantes, sem pedir licença. Mas, para seu alívio, Anderson
se adiantou.
_ Olha, o sol tá se pondo.
Rebeca olhou e viu o céu mais bonito de sua vida. Sorriu. Na
verdade gargalhou, gargalhou tanto que quase que caiu. Há tanto tempo que não
sorria assim. Anderson olhava pra ela sem entender.
_O que foi?
Rebeca não conseguia
responder. Precisava colocar pra fora aquela menina que tanto escondera, com
medo talvez de ser quem realmente é. Porque ser quem realmente é, é ser leve.
Anderson desistiu de saber. Riu também.
_ Que saudade de você! - Disse ele, meio sem jeito.
E, ruborizada, ela respondeu:
_ Eu também estava. Muitas saudades.
Sorriram um para o
outro. Talvez se ele perguntasse ali, naquele momento, se ela gostaria de casar
com ele, talvez dissesse sim. Afinal, de fato, não era mais criança. Tudo bem,
estava longe de ser adulta, mas já sentia que poderia fazer promessas para o
futuro. Melhor não tocar nesse assunto, então.
_ Eu vou falar com a sua mãe, pra ela deixar você conhecer a
cidade grande comigo.
Esse era o seu “sim”. Anderson arregalou os olhos, sorriu de
novo.
_ Antes disso, quero ver se você me alcança.
E saiu em disparada novamente, em direção à outra árvore.
_ Anderson! Você também não mudou nada!
Antes de correr atrás
dele, Rebeca olhou para as crianças da festa. Dançavam quadrilha. Olhou para Anderson. Já estava longe, subindo
em outra árvore. Olhou para a casa da tia Lúcia e viu uns adultos conversando
na varanda. Entendeu o que era estar ali novamente, depois de tanto tempo. Que
bom que sua mãe obrigara ela sair de casa. Não queria ir de jeito nenhum. Não
queria entrar em contato com algo que fez tanto esforço para esquecer. Mas como
esquecer? Como se esquecer de algo que marcou sua alma, algo que fazia parte
dela? A sua infância. Sim, ela sabia ser feliz, sabia ser feliz e não queria
mais negar. Quando se mudou, reagiu a tudo. Agora aceitava. Demorou tanto para
voltar com medo de um sei lá o que... Fechou-se num mundo próprio para se
proteger de sentimentos que estavam sempre com ela. Mas que bom que só tinha
treze, estava aprendendo a viver, a se se descobrir, e é isso mesmo que é. O
que mais importava agora era uma sensação boa de ser leve.
_ Vai ficar aí pra sempre? - Perguntou, Anderson, lá de longe.
“Ficar aqui pra sempre...” Não! Não, definitivamente não. Se tivesse que mudar de novo, se tivesse que
viver coisas novas, que ótimo! Que bom é receber novas oportunidade na vida e
uma coisa não precisa excluir a outra. Não precisava esquecer. Porque entendeu,
ali, que nunca perdera nada. Ela era tudo o que viveu e que ainda viverá. E
pode ser bom aceitar. Abriu os braços bem grande como quem quer abraçar mundo.
_ Rebeca! - Anderson já estava apreensivo. - Você vem?
Rebeca foi. Tia Lúcia olhava de longe. Acenou para os dois.
Feliz.
_ Vamos até o rio?
_Vamos!
Foram. Leves!
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