domingo, 11 de julho de 2010

O HOMEM MORTO E A VIOLONCELISTA


Inteiro




A vida para ele era uma verdadeira queda para a escuridão. Era assim como ele se sentia: Numa queda para escuridão. De repente, nada mais fazia sentido. Como se as ondas que guiavam seu caminho congelassem no tempo, e para descongelá-las era preciso olhar profundamente para dentro, o que ele não consegui fazer. Então parou. Estagnou todas as suas expectativas em relação ao seu futuro. Ficou paralisado no presente, sentindo cada segundo escorrer de suas mãos, sem nada fazer, sem nada querer. Era um estado de conformidade. Simplesmente não sentia vontade nem de lutar, porque se o fizesse, entraria em contato com sua dor mais obscura, teria que ter a coragem mais brava dos homens para encarar suas escórias mais ocultas e vencê-las. Para quê? Se ele não sabia, não valeria a pena. Não que estivesse feliz. Isso ele não estava. Mas também não estava triste. Apenas estava, sem adjetivos . Não vale a pena dizer o que o fez ficar assim. A vida rege cada ser humano entre curvas misteriosas que nem todos são capazes de decifrá-las. Não importava. O que deixou assim não foi algo específico. Talvez uma conjuntura de acontecimentos, todos eles bem pequenos e cheio de detalhes, que unidos, viraram um universo no vazio. Ele assim foi ficando sem questionar e sem impedir. Assim foi, se afastando de sua luz, sem saber que se afastava. E um dia ele já não. Conseguia entender tudo. Isso ele nunca deixou de ter: a consciência sobre todas as coisas. O bem e o mal humano: A consciência. Resolveu acatar o que lhe sucedia, sem nunca deixar de entender. Se assim sua vida quis, assim tinha de ser. Morreu em vida e não permitiu enterro nem dor.


Uma noite, sem planejar, porque sua morte em vida não permitia o controle do tempo, andava desinteressado pela Cinelândia. Apesar de morto, não pôde deixar de perceber o forte movimento de pessoas na porta do Theatro Municipal. Lembrou que na época em que era um homem cheio de vida, uma de suas maiores alegrias era ver os concertos que o teatro oferecia. Era a sua melhor época. Procurava entrar em qualquer concerto que fosse. O poder inebriante da música o deixava verdadeiramente feliz, uma felicidade sem condições impostas, a felicidade plena. Um micro movimento corporal fez vibrarem suas veias e, como se tivesse recebido uma pequena descarga elétrica , sentiu suas células mortas mexerem em seu corpo. O que podia ser? A lembrança dessa época sem cobranças, ou a ideia de ouvir um concerto novamente, coisa que não fazia desde que morrera consciente?

Pela primeira vez sentiu como se lhe passassem a perna. Pela primeira vez não conseguiu entender o que estava acontecendo. Para onde foi a consciência de todas as coisas? Da onde vinha aquela sensação e por que ela vinha com tanta intensidade? Não queria nada. Não esperava nada. Apenas sentia, e sentir, em sua atual condição, era algo mais que forte e algo forte o assustava, não queria lidar com isso, não podia. Virou as costas para o Municipal e entrou no buraco do metrô, na caverna acolhedora da solidão, na sua gruta interna, assim era mais fácil e assim ele queria. Partiu dali, com medo de reviver qualquer coisa.

Ele nunca havia chorado. Nem quando perdeu seu maior amor, por puro descuido, ou imaturidade. Não chorou nem quando percebeu que foi por isso que perdeu seu amor. Não chorou. Talvez sua morte em vida fosse um castigo por não ter chorado. Não que fosse insensível. Ao contrário. Gostava das coisas mais peculiares da vida e dava valor a elas. Como um olhar de um vira-lata, um bebê sorrindo, a pipa no alto fazendo piruetas, o barquinho ao longe parecendo um quadro. Contemplava cada pequeno detalhe como se! Mas não chorou nem por um segundo. Um dia ele tentou chorar. Lembrou de seu falecido pai, quando criança, e o quanto o amava. Mas em vão. Falhou. E nunca mais tentou. Nem tentou tentar.


Agora ele estava descendo as escadas do metrô, fugindo, mais uma vez, de qualquer coisa que...


Até que pudesse acontecer algo que... Até que... Aconteceu!


Ele a viu. Uma mulher. Uma mulher correndo. Uma mulher correndo de vestido. Uma mulher correndo, de vestido, com cabelos avelã. Uma mulher, correndo, de vestido, com cabelos avelã e olhos castanhos. Uma mulher, correndo, de vestido, com cabelos avelã, olhos castanhos e segurando algo. O quê? Sim! Uma mulher, correndo, de vestido, com cabelos avelã, olhos castanhos e segurando um violoncelo? Era isso? Uma mulher, correndo, de vestido, com cabelos avelã, olhos castanhos e segurando um violoncelo! Um violoncelo! “Ah, dor, por que chegas com tanta intensidade no meu peito frágil e me empurras de volta às rodas de som da vida?” Uma mulher, correndo, de vestido, com cabelos avelã, olhos castanhos e segurando um violoncelo, no metrô! Uma facada na alma. Haveria de pensar: entrar ou não no trem? Porque entrar no trem seria dizer não à mulher, correndo, de vestido , com cabelos avelã, olhos castanhos e segurando um violoncelo. Certamente ela iria tocar. Precisava pensar e... cadê? Aonde foi? Cadê a mulher, correndo, de vestido, com cabelos avelã, olhos castanhos e segurando um violoncelo? Aonde foi? Será que o pensamento demanda tanto tempo a ponto de perder uma mulher, correndo, de vestido , com cabelos avelã, olhos castanhos e segurando um violoncelo, de vista? Não!! Teria ter que tomar uma atitude! Mas estava tão neutro e assim era tão bom... Não! Tentou lembrar o que o fizera andar sem rumo na Cinelândia. Não teve resposta. Andava sem rumo em todos os cantos sem motivo. O trem chegou. Entrar ou não? Que saco! Há tanto tempo não sentia isso que se chama escolha. Olhou para trás novamente. A viu. Estava saindo do meio de um grupo de pessoas, com pressa, segurando o violoncelo e os cabelos... ah! Escolha? Não teve escolha. Foi. Atrás da mulher, correndo, de vestido com cabelos avelã, olhos castanhos e segurando um violoncelo. Subiu novamente as escadas do metrô de volta ao mundo, quem sabe de volta à luz. A mulher se dirigia aos fundos do teatro. Mais uma vez sentiu espasmos de vida e se assustou. Seu corpo tremeu. A mulher entrou no teatro e ele sabia que não o deixariam entrar pelos fundos sem se apresentar: “Boa noite eu sou um homem morto e só estou atrás daquela mulher, correndo, de vestido , com cabelos avelã, olhos castanhos e segurando um violoncelo” . Não iriam deixar.


Teve que entrar pela frente e, para isso, foi preciso comprar o ingresso. Comprar o ingresso: ato social de quem vive em comunidade e se adéqua a ela. Há quanto tempo não fazia isso? Comprar um ingresso de um concerto, ou de qualquer outra coisa. Sem motivação, a única coisa que se pode fazer é economizar. Pagou. Entrou. Quanto medo. Quanta angústia. Era preciso desistir. Que loucura. Sou um homem morto. Aliás, não sou homem. Sou um morto. Aliás, não sou. Aliás, não. Desistiu. Nem ia pedir o dinheiro de volta. Pra quê passar por isso? Mais contato humano desnecessário. Virou-se. Esqueceu da mulher, correndo, de vestido , com cabelos avelã, olhos castanhos e segurando um violoncelo. Ainda bem! Ainda bem! Não quero, não posso, não deixo. Não! Ia sair quando tocou o terceiro sinal e ouviu uma curta nota que vinha de um violoncelo afinando. Lembrou da mulher, correndo, de vestido, com cabelos avelã, olhos castanhos e segurando um violoncelo. Era por isso que estava ali, sem compreender, pela primeira vez, o que lhe acontecia. Era por causa dela que correra, que comprara o ingresso, que entrara naquele teatro, palco de suas maiores aventuras emocionais e que ele mesmo deixou o tempo imperfeito ofuscar. Era só por isso e isso não era só. Respirou fundo. Respirou fundo. Respirou fundo. Fundo. Fun...do.... uma sensação estranha. Seu corpo já estava tão acostumado a inércia que, respirar fundo, era o mesmo que correr 40 quilômetros de uma vez, sem nunca ter feito exercício. Quase se sufocou ao sentir o ar do teatro entrando por seus tímidos pulmões sedentários. Respirou fundo e entrou de uma vez ...

Apesar de ter entrado num concerto de música clássica, era como se estivesse num musical com as músicas do Cole Porter.


O mundo entrou em suspensão e pela primeira vez, depois de muito e muito tempo, sentiu seu coração bater de verdade, sentiu cada pontada da batida como um chamado da alma para algum lugar, quem sabe, algum lugar além do… Sentou em uma cadeira qualquer e foi além. A solidão, que até então não se fazia presente, o golpeou de tal jeito, que ele não conseguia se manter parado na cadeira. Sentiu ela o penetrar tão intensamente que por algum segundo percebeu sua morte de outro ponto de vista e quase gritou no meio do teatro. Um grito de socorro, de ajuda . Se ali parecia um sonho, na verdade, era nada mais que um acordar para … Então ela começou. A violoncelista que todo mundo já conhece, de vestido e etc...


Ao vê-la, quase urrou. Não de entusiamos mas de dor. Uma dor que ele nunca pensou que sentiria. A dor que a sala da emergência do hospital mais equipado da cidade é incapaz de identificar, a dor mais mais interna, adormecida, que um dia acorda e não deixa ninguém ileso.


Por que, então, não fugir dali imediatamente e retornar à escuridão confortável da inércia? Mas agora? Seria isso possível? Fechou os olhos e se imaginou dançando uma música lenta com uma menina da adolescência que era apaixonado, a sensação de desespero que era dançar colado com alguém , calculando a melhor hora de agir, sem saber o que fazer. Se imaginou pisando, autista, na grama do jardim de seus avós e observando o dia dar lugar a noite naquele mesmo jardim cheio de segredos seus. Imaginou um filme do Jerry Lewis, o quanto amava e quanto gargalhava com ele na infância, e até mesmo há algum tempo atrás antes de morrer. Ousou sentir saudades. Ousou sentir.


A violoncelista começou a tocar os primeiros acordes do Prelude de Bach. Agora seu coração palpitava, espasmos acelerado, a sensação forte de vida o fazia acreditar que ia morrer de verdade. Uma ataque fulminante do coração, não ia aguentar. O homem morto ia deixar o corpo. Viu o teatro de cabeça para baixo, viu sua vida indo embora, o coração acelerado não dava tréguas. Um golpe certeiro, agora tinha certeza, passaram-lhe a perna, planejaram contra ele, quiserem que ele chegasse naquele momento, sentisse a dor de viver e morresse de vez, sem ladainhas. E assim ele estava, morrendo em morte, na frente da violoncelista que o hipnotizara até ali. Amaldiçoou-a por dentro. Em seu delírio de morte, o Prelude de Bach se transformou em Night and Day do Cole Porter cantado por Ella Fitzgerald e ele estava sapateando com a violoncelista nas nuvens alaranjadas do cenário de Hollywood.


Abriu os olhos e ela estava olhando para ele, ou parecia que estava, olhando para ele, como se adivinhasse a sua dor, como quem quer dizer: “Eu sei tudo o que está acontecendo com você e não vou aliviar nada.”


Porque ela o olhava e … Sorria? Ela sorria. Sim, ela sorria para ele. Que ego dizer que era para ele. Ela simplesmente sorria. Mas para ele, ela sorria para ele e, dane-se o ego. Era sim para ele. Já não bastava apenas tocar os acordes que acordam sua alma e ainda tinha que sorrir? Se ainda não tinha morrido do coração, agora era questão de segundos. O sorriso dela o fez sentir tristeza, tanta tristeza, tanta, tanta, tanta. O obrigou a ser triste porque não podia ser feliz. Mas o que é a felicidade se não uma grande tristeza disfarçada de alegria? A voz de Ella, ainda se fazia presente em sua mente. Era Ella cantando Porter e a violoncelista tocando Bach num quarteto inesquecível.


Ela olhava para ele. Ela o sentia. Ela o percebia e talvez por isso sorria.


De repente, o homem morto era o único vivo naquele teatro. Ele tremia com a música, ele respirava alto, ele sentia espamos, ele... ele... ele chorava!!! O homem morto chorou pela primeira vez. Um homem morto chorou. Lágrimas caiam em enxurradas mais fortes que uma tromba d´gua no fim do verão . As pedras do seu rio eram levadas pela água e nada, nada, nada, o faria parar naquele momento. As pedras que o travaram, agora eram obrigadas a rolar. O poder do choro vai muito mais além. Chorava com a violoncelista linda e maldita que o fez chorar pela primeira vez. Chorava de pêsames pela sua morte em vida e chorava porque o choro ainda não significava que voltaria a viver, apenas chorava. Chorava de dor pela sua solidão há tanto ignorada e que agora era maior que qualquer coisa que pudesse imaginar. Chorava pela sua existência, pela existência alheia e chorava também de felicidade por sentir seu choro pela primeira vez. Chorava e chorava porque estava ali chorando. Agora já não tinha mais a consciência de nada. Agora ele era um ser perdido em seu choro e talvez seria apenas por isso que era capaz de ser. Talvez soubesse no íntimo que a sua morte o mudara a partir daquele momento e conviver consigo mesmo seria um futuro em transtorno. Sabia que não poderia voltar a morrer, mas também não sabia se volatria a viver. Chorava. E rezava para não parar de chorar. Algumas pessoas do teatro, talvez as mais sensíveis, o perceberam chorando e até compartilharam um pouco desse choro por causa do efeito da música, mas jamais saberiam o que de verdade o fazia chorar.


A violoncelista não parava de sorrir, como se tivesse cumprido a sua missão. Não a de tocar lindamente como sempre fazia, mas de fazer um homem morto chorar.


Então agora ele já não ouvia Bach, nem Cole Porter, agora ele ouvia, e até poderia cantar uma música gospel de redenção. Levantaria daquela cadeira e soltaria um agudo vibrante como Stevie Wonder faria tão bem. Oh Lord!


E o choro não parava por nada e não pararia. O homem morto tem água por dentro! Agora ele era o melhor dançarino do Grupo Corpo, agora ele era.


A violoncelista fazia sua melhor performance. Agora ela estava genialmente virtuosa.


Então ele, como nunca fizera antes, resolveu olhar pra fora, com o canto dos olhos e se perguntou.


Por quê?


Porque, por que, por quê? Porque, porque...




FIM.


5 comentários:

  1. Se a vida é um estado de espírito... também é a morte... goste ou desgoste.

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  2. nossa, Renata. que vontade de continuar lendo a vida desse homem morto...

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  3. Tive que botar o preludio pra tocar enquanto imaginava a violoncelista fazendo seu trabalho. Sensacional. Fazer sorrir, fazer sofrer, fazer viver.

    Eu nunca esqueci de quando me disseram que se um carro estaciona no teu pe' voce mal sente -- o problema e' quando ele sai de cima e o sangue volta `as veias...

    Beijos mil.

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  4. Dead man walking!
    Q tristeza de vida...
    Mto Bacana!
    Bjs!

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  5. Minha cara Renata, belissimo e comovedor teu conto
    Um grande abraço . Giselda

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