quinta-feira, 8 de julho de 2010

DESCULPA, PRECISAVA VOLTAR


"Na fila do banco é tanta anestesia de ser, que é possível acontecer o sexo explicito e ninguém reagir."




Ela tinha que entrar na Caixa Econômica. Sim, Caixa Econômica. Precisava resolver alguma coisa com seu pis, ou seria o seguro desemprego? Ela precisava entrar. Também tinha que depositar um cheque em outro banco. Precisava também tirar umas xerox na esquina, assinar uns papéis num escritório, pagar as contas atrasadas. Ela precisava. Era uma realização, pequenas vitórias do dia, pequenos desafios concretizados, alívios, espasmos de ser gente, adulta, sim, era preciso ser adulta.




Então se via: rua, carros, barulhos, freadas, bagunça, gente, gente, gente, quanta gente!


Copacabana é mesmo um bairro muito intenso. Alegre e triste, colorido e obscuro. Mas então, não podia desistir, acordou para isso, ou melhor, dormiu pensando nisso, não podia desistir. Chega de adiar o dia. Preparou uma pasta de documentos, abriu a caixinha do correio do prédio, tirou uma infinidades de contas e avisos atrasados e foi. Decidida, mulher, adulta, independente. Foi.


Nossa senhora de Copacabana! Lá estava ela. Altiva. “Hoje sou adulta”. Estava até mais bonita. Sentia. Olhavam-na. Era a roupa? Talvez. Se arrumou todo para tal missão. A unha fizera no dia anterior. Era preciso se sentir bonita. O desafio era grande.


Porta do banco. Aconteceu o primeiro calafrio. A fila era enorme. O banco estava sem ar condicionado. Homens, mulheres, crianças, adolescentes, idosos já não eram mais pessoas. Eram como animais na fila para ganhar sua ração. Hesitou, ouviu um latido de um cachorro singelo, se distraiu com ele, mas não podia, respirou fundo, o primeiro passo, entrou. Foi para a fila, não podia, tinha que pegar uma senha. O numero? 235. Que numero estava? 189. Haviam ainda 46 pessoas em sua frente. Fez a conta: cinco minutos para 46 pessoas, no mínimo 230 minutos de espera, que significam, quase 4 horas de espera. Começou a suar. O batom, ali, já havia saído. Ainda tinha tanta coisa pra fazer. Mas o que fazer? Esperar? Abriu a bolsa. Pegou um livro de contos estratégicos para filas. Começou a ler. Leu 15 minutos e não aguentou mais. Já era outra, a outra pior. Suava frio, apesar do calor infernal do banco sem ar. A moça ao lado bufava. O menino no colo da mãe chorava. Por que tinha que estra ali? Por quê? Ah! Lembrou. Tinha que receber o seguro desemprego. Aquele dinheiro viria em boa hora. Podia viver sem ele, mas com ele tudo seria melhor. Tudo? Pensou bem. E se voltasse amanhã? Não! Todo dia ela adiava, precisava encarar. Seu coração palpitava. Não entedia. Quanta dificuldade. Era apenas um banco. O mundo real. Olhou pra a porta e lá fora estava ventando. Adorava o vento. Lá dentro, calor, lá fora, a brisa que vinha do mar. Mar!!! Por que lembrou dessa palavra? Enquanto ela estava ali, na primeira etapa do dia, encarando 4 horas de espera, ele estava lá, na praia, num vai e vem eterno, o eterno movimento que acalma a sua alma nas horas de dor. Seus olhos mudaram. É como estivesse hipnotizada. Tirou os sapatos no meio da fila. Alguns olharam, outros disfarçaram, mas a verdade é que ninguém entendeu nada. Não reparou em ninguém. Só pensava no mar. Ali estava tão quente... e o seguro desemprego, e o pis? É verdade. Que loucura, coloca o sapato! Colocou -o de volta. Segurou na mulher gorda da frente pra ter certeza que estava ali. “ Desculpa, precisava voltar”. Ela disse, sem graça. Mas voltar da onde? Do surto. A mulher gorda olhou-a com raiva e disse: “ Gente louca!” Gente louca? Estava se referindo a ela? Muito provavelmente. Foi ela que a segurou nos braços e disse uma frase totalmente desconexa: “Desculpa, precisava voltar”. Então se enxergou. Será que estava louca e não havia percebido? Pensou na análise que tinha deixado de fazer alguns anos atrás. Mas não... loucas eram aquelas pessoas, naquela fila, naquele calor, naquele tempo... será que a necessidade é tão grande que reprime o ser humano a tal ponto que se deve aceitar essa condições? Coisa que não aconteceria em país desenvolvido. Odiava pensar isso: Só porque aqui é terceiro mundo. Odiava ter que admitir isso. Tentava entender as sequências históricas para chegar nesse ponto e não havia duvidas. Todas as questões arraigadas da colonização se faziam presentes naquele mesmo presente aterrorizador de estar numa fila de um banco público, sem ar condicionado, com poucos funcionários e gente, muita gente, que...


Um música. Uma música no ar. Ouviu uma música! Era uma boa música. Uma dessas novas cantoras com voz de quem acabou de acordar, gostosinha, sem muita extensão, mas cheia de simpatia, cantava uma especie de “new soul” americano, uma hino de paz. Da onde vinha? Olhou para todos os lados e procurou suspeitas. Olhou diretamente para os jovens que levam seus Ipods, MP3, celulares musicais, mini lapt tops, o que tiver que ser , para tudo quanto é lugar. Enfim, a música vinha de algum lugar e a deixava feliz. Um pouco de magia no deserto burocrático. Sem perceber seu corpo estava se mexendo. Não! Não estava no filme “Vivendo a vida adoidado” cantando beatles e todo mundo ali ia começar a dançar numa coreografia uníssona, como se estivem ensaiado a vida toda. Sabia disso e tentou se controlar. Mais uma vez, o controle social civil para se adequar ao padrão cotidiano. Mas a música estava lá. Um ipod oculto, um celular que chamava e ninguém atendia de propósito. Ou seria do próprio bancário que para escapar de sua rotina opressora, ouvia secretamente debaixo da mesa a música dos anjos? O fato é que a música a fez lembrar do mar mais uma vez. Lembrou dele, da sua cor, da cor do céu. O sol nessa época proporciona cores espetaculares na natureza. Ai, que dor estar ali. Mas não tinha o direito para ir para o mar. Era meio da semana, todos deviam estra trabalhando ou resolvendo alguma burocracia da vida!!


Horror. Como pensar que poderia estar no mar? E a roupa bonita, e unha que fizera? Não podia. Mas a música... Ah, o poder da música é algo que jamais iremos compreender. Nem ela. A música causava um efeito tão libertário, tão avassalador . É pra isso que estamos vivos? Para encarar as filas de banco? A musica falava algo sobre o quanto você me fez bem, o como não fez bem , mas já estou bem... ou seja, mais uma musica sobre amor, de novo, nada além do padrão, mas não era isso que importava, o que importava era a musica simpática no caos. MARRRR!! Ele gritava agora em seus ouvidos e reinsistir era muito difícil. Tirou o sapato de novo. Que louca, deveriam pensar. Ou não. Na fila do banco é tanta anestesia de ser, que é possível acontecer o sexo explicito e ninguém reagir. Tirou o sapato, tirou o casaco, soltou o cabelo. Mais uma vez chamou a mulher gorda da frente. “Pode segurar a minha bolsa por um instante?' A mulher olhou de novo, com repreensão, sem entender absolutamente nada, mas no automático que estava segurou sem questionar. Então foi!! Quatro horas de espera! Haveria tempo suficiente. Fugiu! Fugiu dela, fugiu deles, fugiu do banco, fugiu da vida, fugiu do presente, fugiu do passado, fugiu! É muito difcil ser adulta por muito tempo. É facial ser mulher, ser adulto, alguém é? Ela foi mulher. Não foi adulta. Ou foi adulta e não foi mulher? Não importa. Ela foi!


Pro mar!!!! quatro de horas na fila, ou quatro horas nadando, quebrando e transgredindo a rotina imposta as massas? Copacabana, princezinha do mar. Posto Cinco! A musica do banco ainda estava em sua cabeça. Tudo bem. Melhor que a voz de qualquer um reclamando qualquer coisa, o que é comum na cidade grande. Melhor que o telefonema da operadora que liga para cobrar o atraso. Melhor que. Obrigada à pessoa que ouvia a musica! E a bolsa? Não confiara demais na mulher gorda? Tudo bem, é só uma bolsa... nem é só, mas tudo bem... Ali tava tão bom. Um alívio. O inverno é lindo mesmo. É sol sem calor, um carinho no corpo. E lá ficou até chegar a hora de voltar e ser atendida. Quando voltou para o banco, toda molhada , com um sorriso na cara, feliz, ninguém reparou. A moça gorda estava lá com a sua bolsa, e como se o tempo não passasse a devolveu. Estranhamente a música ainda tocava. Será que era o som ambiente? Vai saber... Era mulher, adulta, criança, era ela mesma... Agora sim podia continuar seu dia. E assim foi.












http://www.youtube.com/watch?v=dtslwxL_Leg

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